terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Banqueiros e Falsificadores - A Moeda na Europa Renascentista


DOS NEGÓCIOS ÀS FINANÇAS, PASSANDO PELOS METAIS DO NOVO MUNDO, AS PERIPÉCIAS MONETÁRIAS DA EUROPA DO RENASCIMENTO

É comum considerar-se a moeda sob o ângulo de suas funções de unidade de conta, de forma de pagamento e de reserva de valor. Padrão de medida para o conjunto dos bens trocados, a moeda gera um espaço social homogêneo, onde todos possuem a mesma referência para avaliar seus créditos e suas dívidas.


*O Pesador de Ouro, do pintor holandês Gerard Dou (1613-1675)

Na Europa, esse espaço se afirmou no século XVI no interior das diversas fronteiras nacionais, e a moeda levou ao exterior a bandeira de cada nação. Instrumento do pagamento, a moeda também fez circular a mercadoria. O desenvolvimento espetacular da produção e das trocas nessa época é, no entanto, geralmente associado ao crescimento da massa monetária sob a forma, ao mesmo tempo, de papéis comerciais e moedas metálicas fabricadas com os metais vindos da América.

Reserva de valor, por fim, a moeda implica uma concepção particular da temporalidade, que permite contornar a angústia existencial. O tempo torna-se o suporte dos projetos do homem, não pertence mais totalmente a Deus. O século XVI europeu é uma época de tomada de consciência da moeda como capital, testemunhada pelos debates sobre juros dos empréstimos, o ajuste dos créditos e a origem das altas de preços, inclusive a venda de indulgências.

Parece, portanto, que a moeda cumpriu bem suas funções, e contribuiu para a consolidação dos laços sociais da Europa do Renascimento. Mas toda moeda tem seus dois lados: a moeda é também um conjunto de forças centrífugas de aquisição e rejeição. E essas agitações foram ainda mais acentuadas pela duplicação da população da Europa durante o Renascimento.

A CONTESTAÇÃO DO PODER PELOS PRÍNCIPES

As primeiras perturbações causadas nessa época pela moeda referiam-se à sua emissão. Apenas a autoridade política representativa, em determinado espaço nacional, podia cunhar moeda e dar-lhe um curso legal, princípio esse tomado, após muitas vicissitudes, do direito romano. Apesar do rigor das sanções aplicadas aos contraventores (por vezes cozidos vivos em um caldeirão), as contestações da cunhagem oficial eram muito frequentes.

*O Florim, uma das moedas medievais mais copiadas na Europa - esse de 1252 com 3,56 g.

A primeira categoria de fraudadores era a dos que se aproveitavam do fato de existirem moedas que, embora do mesmo valor, não apresentavam o mesmo peso. Tais moedas estavam em toda parte, pois as técnicas de cunhagem eram então rudimentares para permitir uma exata reprodução das peças. Qualquer comerciante atento, qualquer agente de câmbio e até os cobradores de impostos examinavam minuciosamente as moedas, retirando de circulação as mais pesadas. Bastava então vender a peso, por bom preço, o metal precioso nos ourives, para lucrar em cima do valor nominal das peças. Também se poderia diminuir o excedente de metal raspando a moeda, e só repor em circulação o estritamente necessário, contando com a pouca probabilidade de os usuários quererem verificar se as moedas seguiam os padrões oficiais (se seguissem, caberia aos usuários arcar com as despesas da verificação).


*Diferenças entre duas peças de 8 reales: a primeira cunhada a martelo - Potosi (Bolívia) 1682 e a segunda laminada - Sevilha, 1591.

Serrilhar a borda das moedas e fazer um círculo em torno da efígie eram os meios empregados, sem muito êxito, para limitar essa diminuição; já a nova técnica da laminação, que impediria totalmente essa prática, não pôde ser implantada no século XVI em nenhum país, tanto em virtude do custo quanto da resistência dos artífices especializados na antiga técnica de cunhagem de moedas com martelo. Pouco a pouco, os príncipes tiveram que impor a pesagem das peças nas transações, para garantir à moeda uma autenticidade que só a sua efígie já não assegurava. No que se refere à luta dos soberanos para impedir que os ourives fixassem livremente o preço dos metais preciosos, bem pouco adiantaram os éditos de proibição.

Mais radicais ainda foram os antagonismos que apareceram entre falsificadores de moedas e o que se poderia chamar de antimoedeiros. A contrafação, isto é, a cunhagem de peças falsas (chamadas expressivamente de “adulterinas”) se concentrou, no século XVI, nas moedas espanholas, e dizia respeito sobretudo às pequenas peças, de fabricação menos cara e controle mais difícil. Entretanto, diversos soberanos não hesitavam em cunhar peças imitando as de estados estrangeiros, a fim de elevar a taxa de cunhagem por sua conta (no caso de pequenos Estados que não tinham moeda própria), ou reter uma parte do metal cunhando imitações de menor peso.

Não faltam exemplos célebres de contrafações: na França, a cunhagem paralela de moedas foi organizada durante cerca de 10 anos pelos papistas, a fim de sabotar a produção de dinheiro oficial do rei protestante. Em outro caso, a cunhagem se deu em detrimento da Espanha, cujos metais preciosos vindos da América eram pirateados a caminho da Europa.

*As lendárias Minas de Cerro Rico de Potosí, no Novo Mundo (Bolívia) Gravura de Théodore de Bry (século XVI)


*Transporte da prata de Potosí em Lhamas, gravura de Théodore de Bry (Século XVI)


Desde que descobriu as Antilhas e depois a América, a Espanha explorou sistematicamente metais preciosos dessas regiões, os quais eram enviados duas vezes por ano, sob escolta militar, a Sevilha, onde eram cunhadas as moedas espanholas. As entradas de metal registradas no século XVI foram consideráveis: cerca de 250 toneladas de ouro e 200 mil toneladas de prata, ou seja, um terço de todas as reservas europeias. Além disso, certos historiadores estimam que a quantidade de metais que entrou clandestinamente e escapou aos registros espanhóis, sendo desviadas para cunhagem em países concorrentes, pode muito bem ter sido equivalente aos números oficiais.

Mas o desvio de moedas podia também tomar formas menos complicadas, como a que consistia em um acordo entre particulares para fazer circular peças proibidas pela autoridade soberana. Periodicamente, os príncipes decretavam que determinada moeda nacional ou estrangeira não poderia mais ser usada em transações comerciais por ser de qualidade inferior. Ela deveria, então, ser levada à casa da moeda para ser destruída, ocasião em que o portador receberia o valor correspondente ao peso da moeda. Era comum os particulares não levarem em conta esses éditos e colocarem em circulação privada as peças em questão – principalmente quando faltavam instrumentos monetários. Foi, por exemplo, o que aconteceu na França com as moedas espanholas de pequeno valor na segunda metade do século XVI.

Mais frequente ainda era a prática de negociar com moedas oficialmente autorizadas, mas dando-lhes uma cotação (chamada “voluntária”) que ignorava o preço fixado pelo príncipe. Nessa época, e por mais de dois séculos ainda, o valor das moedas era estabelecido por anúncio público, e não pela inscrição na própria moeda. Esse fato fez com que se desconfiasse da cunhagem oficial e, em certas regiões e épocas, aconteceu de a cotação privada de uma moeda alcançar o dobro do valor anunciado oficialmente. Essas circunstâncias comprometiam seriamente a capacidade inerente à moeda de homogeneizar as relações sociais.

No grupo dos antimoedeiros, convém estabelecer duas categorias de agentes. Primeiro, havia os que se recusavam a abandonar a permuta; tal sistema se manteve em inúmeras comunidades rurais, apesar da extinção do comércio de mercadorias em todo o espaço europeu da época. Eram também, de certa forma, antimoedeiros os que queriam ater-se somente ao peso do metal precioso (e, em certos casos, ao do sal) como medida de valor, excluindo das transações qualquer moeda cunhada pela autoridade pública.

Para isso existiam diversos meios. Primeiro, podia-se incluir uma “cláusula ouro” nos contratos a prazo, estipulando que o pagamento se efetuaria em determinado número de moedas especificadas, qualquer que fosse seu valor do momento como umidade de conta. Essa cláusula, herdada do direito romano, se manteria por muito tempo. Nos contratos de compras diretas, a desconfiança com relação à cunhagem traduzia-se na obrigação de pagar em metal bruto, com base em uma tarifa contratual. No século XVI, na França, entre um quarto e um terço das transações ocorria mediante troca de objetos de ourivesaria (anéis, taças) ou de pó de ouro retirado dos rios (a garimpagem ainda era uma atividade corrente), quando não raspado das moedas em circulação.

O COMÉRCIO INTERNACIONAL

No comércio da Europa com o resto do mundo, os pagamentos eram efetuados em metais preciosos. É verdade que para comprar as sedas e as especiarias do Oriente podia-se utilizar certas moedas de curso oficial, em particular o “excelente” espanhol e o zequim veneziano, até meados do século XVI, e depois o real de prata espanhol. Mas essas peças, pouco numerosas, tinham características específicas que impediam que fossem substituídas por outras.

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*Meio "Excelente" de ouro (5,6 g) dos Reis Católicos (Fernando e Isabel) cunhado em Sevilha


*Zecchino de ouro (3,5 g.) em ouro puro (0.997 ou 99,7% de ouro) do doge Francesco Venier (1554 – 1559) 

Com um peso de metal puro, praticamente constante (3 a 4 gramas), essas moedas eram difíceis de imitar, e a efígie nelas gravada só garantia a sua conformidade, sem representar uma unidade de conta fora das fronteiras nacionais. Dessa forma, no comércio internacional da Europa essas moedas valiam de acordo com seu número ou seu peso em metal puro, mas careciam de status monetário. Nesse aspecto, e mesmo sem considerar a guerra, a pirataria e a escravidão, que o acompanhavam, o comércio desenvolvido no século XVI pelos europeus não pretendia homogeneizar o espaço mundial.


*Peça de 8 reales em prata, Casa da Moeda do México sem data (1564-1567) Felipe II da Espanha


O mesmo acontecia com os certificados de depósito que circulavam dentro de cada espaço nacional europeu. Esses certificados, que só seriam substituídos por cédulas de banco um ou dois séculos mais tarde, eram emitidos desde o século XIV por certos banqueiros em troca de depósitos em espécie em seus cofres; tinham o valor de promessa de pagamento imediato pelo banqueiro, e circulavam como moeda.

*Oficina de cunhagem francesa - reinado de Luís XII (1462-1515)

O fraco desenvolvimento da indústria e do artesanato era ao mesmo tempo causa e consequência dos costumes monetários da época: de um lado, essas atividades não produziam riquezas suficientes para que sua partilha fosse objeto de um consenso social; de outro, a orientação prioritária das despesas – guerras, terras, prebendas, produtos de luxo importados – mantinha sobretudo categorias parasitárias. A produção permanecia principalmente agrícola, e seus excedentes eram trocados em mercados locais ou nas feiras distantes, e somente em certos períodos do ano. A figura do empresário ainda não surgira, e a atividade econômica era simbolizada pelos negociantes, por cujas mãos circulava o dinheiro.

OS BANQUEIROS MERCADORES

Entre esses negociantes, os banqueiros mercadores, em seu apogeu no século XVI, ilustram perfeitamente a natureza da atividade monetária da época. Desde a Idade Média, havia nos países da Europa uma redistribuição de mercadorias: matérias-primas do continente e artigos de luxo do Oriente eram objeto de um intenso comércio de importação e exportação. Este se localizava nas cerca de seis grandes cidades onde se realizavam feiras periódicas e onde o pagamento das compras suscitava uma atividade específica: a conversão a um certo preço das unidades contábeis nacionais (o câmbio).

*Jakob II Fugger (1459-1525) - um dos maiores banqueiros europeus do século XVI

Ficheiro:ContabilidadeFuggerkontor.jpg
*Jakob II Fugger com seu principal contador M. Schwartz. Ao fundo aparecem os dossieres das sucursais de seu banco (note alguns nomes como "Roma", Lisboa" e "Nurenberg")

Os banqueiros mercadores, que perpetuavam uma tradição iniciada no século XIII, nas feiras de Champagne, eram então agentes particulares que possuíam o monopólio da compra e da revenda da dívida internacional (letra de câmbio) dos mercadores comuns. Seu monopólio vinha de sua implantação em todas as feiras da Europa, onde formavam uma rede que fazia deles os intermediários obrigatórios dos outros mercadores. Esse monopólio levou a uma avaliação consensual do preço internacional da dívida originalmente expressa na moeda de um só país. Nesse sentido, os banqueiros mercadores, em Lyon, sua capital, criaram no século XVI uma moeda de âmbito europeu.

*Os Agiotas, do pintor holandês Marinus Van Reymerswaele (1490-1546)

Ao determinarem o valor internacional das moedas, os banqueiros mercadores entravam certamente em conflito com seus clientes comerciantes, de quem cobravam uma margem de lucro. Mas deviam enfrentar os príncipes, que fixavam, por seu lado, uma cotação oficial para as moedas estrangeiras admitidas em seu país. Muitas modificações e altas de preços nasceram desses antagonismos monetários, exacerbados, além disso, por outras dimensões que confrontavam as atividades financeiras e bancárias no próprio círculo dos banqueiros e mercadores.

Geradora do vínculo social em seu princípio, em virtude da referência comum que institui, a moeda é também perturbadora por seu uso. No que pese à sua transformação em uma nova divindade na Europa do século XVI, a moeda, à imagem e à semelhança do homem que a criou, continua na busca de seus limites.


*Fonte: O Correio da Unesco, Março de 1990 Ano 18 Nº 3
*Fotos retiradas da Internet

Um comentário:

  1. Prezado Sr.Cardoso

    Tenho o prazer de cumprimentá-lo pela clareza e seleção de assuntos em seu blog.

    André Matzenbacher
    São Leopoldo RS


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